Os Salmos e a Oração
Durante quase dois mil anos, os Salmos foram centrais para a devoção da igreja cristã, ensinando os fiéis a orar, em resposta ao Deus que se revela. Como Eugene Peterson escreve, “não existe outro lugar em que se possa enxergar de forma tão detalhada e profunda a dimensão humana da história bíblica como nos Salmos. A pessoa em oração reagia à totalidade da presença de Deus, partindo da condição humana, concreta e detalhada”. Só que, por volta da primeira metade do século dezenove, com o aparecimento dos métodos críticos de estudos bíblicos, os salmos perderam sua centralidade na devoção cristã. Deixaram de ser a escola de oração que dava forma à oração dos fiéis, em sua resposta ao Deus que se revela. Passaram a ser vistos como a piedade deteriorada de uma religião desgastada [Este processo é resumido por Eugene Peterson, Um pastor segundo o coração de Deus (Rio de Janeiro: Textus, 2001), p. 21-40].
1. Os Salmos e a oração
A escola que Israel e a Igreja recorreram para aprender a orar foram os Salmos. Na igreja primitiva e durante a reforma protestante, quando um pastor queria ensinar sua congregação sobre a oração, pregaria nos Salmos. Agostinho, o bispo de Hipona, na África do Norte, que pregou todo o livro dos Salmos para sua congregação, chamou-os de “escola”. Ambrósio, o bispo de Milão chamou-os de “um tipo de ginásio para ser usado por todas as almas, um estádio da virtude, onde diferentes exercícios são praticados, dentre os quais se podem escolher os mais adequados treinamentos para se alcançar a coroa”. E antes deles, Atanásio, o bispo de Alexandria, enfatizou que ainda que cada Salmo seja “falado e composto pelo Espírito”, eles “falam por nós”, sendo o “espelho” de nossa alma. Desde o princípio, a Palavra de Deus sempre vem em primeiro lugar. Nós somos chamados a responder a Palavra, com todo nosso ser. Em outras palavras, a oração é nossa resposta à revelação de Deus nas Escrituras. Sendo assim, os Salmos são a escola onde os cristãos aprendem a orar.
Se insistirmos em aprender a orar sozinhos, sem depender dos Salmos, nossas orações serão pobres, uma repetição de frases prontas: agradecemos as refeições, arrependemo-nos de alguns pecados, suplicamos bênçãos para reuniões sociais e até pedimos orientação. Por outro lado, toda nossa vida deve estar envolvida na oração. Peterson exemplifica esse fato com o livro do profeta Jonas, que gira inteiramente em torno das relações entre Deus e o profeta. Essas relações se originaram por meio do chamado profético, do qual Jonas procurou fugir. Mas ele não é entregue a si mesmo. Na primeira parte da historia, Deus deixa que o profeta chegue ao extremo de quase perder a própria vida, somente para em seguida restaurá-lo à posição onde se encontrava antes dele tentar evitar o chamado do Senhor.
No centro da história está a oração que Jonas proferiu após ser engolido por um grande peixe. Sua primeira reação ao se encontrar no ventre do peixe foi fazer uma oração (cf. Jonas 2.2-9), o que não é surpreendente, pois geralmente oramos quando estamos em situações desesperadas. Mas existe algo surpreendente na oração de Jonas. Como Peterson destaca, sua oração não é original ou espontânea: “Jonas aprendeu a orar na escola, e orava como aprendera. Sua escola eram os Salmos”. Como o mesmo autor demonstra, frase após frase a oração de Jonas está repleta de citações dos Salmos:
• “Minha angústia” de 18.6 e 120.1
• “Profundo” de 18.4-5
• “As tuas ondas e as tuas vagas passaram por cima de mim” de 42.7
• “De diante dos teus olhos” de 139.7
• “Teu santo templo” de 5.7
• “As águas me cercaram até à alma” de 69.2
• “Da sepultura da minha vida” de 30.3
• “Dentro de mim, desfalecia a minha alma” de 142.3
• “No teu santo templo” de 18.6
• “Ao Senhor pertence a salvação” de 3.8
Cada palavra é derivada do livro dos Salmos. Geralmente achamos que a oração é genuína quando é espontânea, mas a oração de Jonas, numa condição extremamente difícil, é uma oração aprendida, sem originalidade alguma.
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