Não existe sinergismo real
O que segue é uma pergunta que fiz a Vincent Cheung e sua respectiva resposta. A tradução ficou por conta do irmão Rogério Portella.
Pergunta: Em sua Teologia Sistemática você afirma que a santificação é sinergística, pois nós cooperamos com Deus, ainda que ele seja a causa de nossos atos, a causa de nossas boas obras. Nesse sentido, porém, não podemos dizer que a conversão também é sinergística? Não estou falando a respeito da regeneração ou da justificação, mas a respeito do ato de crer. Pois, ainda que Deus seja o autor e a causa da nossa fé, nós a exercitamos, como na santificação. Não seria melhor dizer que mesmo nossa santificação é monergística?
Resposta: Usemos o xadrez como analogia. Todas as têm suas limitações, mas conquanto nos concentremos na ilustração provida pela analogia, ela poderá ser útil.
Existem dois “níveis” de realidade no jogo de xadrez: 1) As ações dos jogadores, e 2) As relações entre as peças de xadrez. Se falarmos a respeito do nível 2, então “cavalo captura peão” faz sentido. Todavia, quando o dizemos, com certeza não afirmamos que o cavalo move a si mesmo e remove o peão do tabuleiro. Presumimos que o cavalo não possui o poder inerente de mover-se, e que o jogador causou o movimento. Contudo, enquanto falamos sobre o que ocorre no nível 2, não é preciso mencionar o jogador, ainda que ele seja necessário para compor o quadro todo. No entanto, assim que o tópico é alterado para o nível 1, a fim de debater a causa, então “cavalo captura peão” não faz nenhum sentido como descrição da causa, por não ser uma descrição da causa. Deve-se falar a respeito do jogador.
Agora para aplicar essa analogia ao nosso tópico, acresçamos umas poucas coisas ao jogo de xadrez: A) Suponha que as peças de xadrez sejam de fato sensíveis — seres inteligentes com percepção, processos reflexivos e sentimentos. B) Suponha que qualquer coisa que ocorra no tabuleiro, qualquer ação associada às peças de xadrez, deva ser causada por completo pelo jogador. Isso inclui os pensamentos e os sentimentos das peças de xadrez. C) Suponha que algumas ações realizadas pelo jogador nas peças de xadrez envolvam a percepção das peças de xadrez, e outras ações não.
Admitindo-se B, é concebível que não nos interessemos pela distinção dos dois tipos de ações em C. Supondo, porém, que nos interessemos em fazer a distinção, então poderemos chamar o primeiro tipo C1, e o segundo tipo C2.
Estamos prontos agora para aplicar a distinção ao tópico da soberania e salvação pertencentes a Deus.
Se o tópico for metafísica, ou causação, então termos como “sinergismo” e “causa secundária” não fazem sentido. São desprovidos de significado e inúteis. Quando o tópico principal é a soberania divina, fala-se de fato sobre metafísica, sobre causação. Isso significa que eu me oponho à doutrina tradicional sobre a questão. É absurdo dizer que a soberania divina não suprime “a liberdade ou contingência das causas secundárias”, ou o contrário: que a estabelece. É evidente que a liberdade e a contingência são suprimidas. Elas, e a própria ideia das causas secundárias, são completamente destruídas e perdem seu significado.
Se o tópico disser respeito às relações entre os objetos criados, então o termo “causa secundária” ainda não fará sentido, pois se a discussão estiver limitada a esse nível, a “causa” de fato não será “secundária,” e o que é “secundário” não constituirá a “causa”. Poucas vezes (ou de forma mais exata, raramente) uso o termo para acomodá-lo à tradição (para que as pessoas saibam do que estou tratando, ainda que o termo por si só seja sem sentido... Assim fico pensando se alguém sabe do que estamos falando…) — à qual não tento eliminar por completo, ainda que fosse difícil alguém me acusar se eu tentasse fazê-lo. Seja como for, normalmente estabeleço as qualificações para evitar a confusão excessiva.
Meu uso do termo “sinergismo” também serve para a acomodação à tradição. Deve existir alguma forma de distinguir C1 de C2. Todas as coisas são causadas por Deus; no entanto, a eleição e a justificação, por exemplo, não estão associadas a qualquer percepção ou sensação no homem, ao passo que a santificação — como a resistência à tentação, ou mesmo mover os lábios para orar — envolvem certo esforço consciente, alguma percepção e sensação do ser humano. (Note que também uso na Teologia sistemática a consciência do esforço como motivo para distinguir a santificação.) Em C2, até o esforço e a percepção são causados de forma direta por Deus, de tal forma que em sentido metafísico, o homem de fato não contribui nem coopera — as criaturas jamais contribuem ou cooperam em sentido metafísico, apenas em sentido relacional.
Assim se assegura alguma forma de distinção entre justificação e santificação. Não obstante, sua pergunta suscita a questão se o sinergismo é o melhor termo para descrever essa distinção, pois a ideia de “energia” está envolvida, e o homem de fato não contribui com qualquer energia inerente para cooperar com Deus. Mesmo a “energia” depositada no homem deve ser posta em movimento por Deus para exercer sua função. Na santificação, Deus faz o homem cooperar com os preceitos divinos enquanto gera a percepção do esforço nele.
Com relação à necessidade da distinção entre conversão e santificação, percebo seu ponto, mas a distinção deve ser feita. Isso acontece porque na santificação (p.ex. quando alguém resiste à tentação), a pessoa já conta com a fé, entretanto, quando a pessoa é convertida, ela recebe a fé — não há nenhum esforço espiritualmente benéfico no ato de recebê-la. Pode-se afirmar, nos termos da causação, que não há diferença — todas as coisas são causadas de forma direta e única por Deus. No entanto, existe uma diferença nos termos da relação entre os seres criados. Na santificação, Deus já instilou a disposição benevolente no homem, e lhe faz ter consciência dos próprios esforços.
O ponto de partida é a inexistência de sinergismo real em qualquer ação empreendida pelas criaturas; no entanto, caso precisemos de uma palavra para assinalar a distinção entre os dois tipos de acontecimentos causados por Deus — um sem a percepção humana, o outro com a percepção humana — então “sinergismo” é uma opção, ainda que seja indiscutivelmente imperfeita e enganosa.
Vincent Cheung
Resposta: Usemos o xadrez como analogia. Todas as têm suas limitações, mas conquanto nos concentremos na ilustração provida pela analogia, ela poderá ser útil.
Existem dois “níveis” de realidade no jogo de xadrez: 1) As ações dos jogadores, e 2) As relações entre as peças de xadrez. Se falarmos a respeito do nível 2, então “cavalo captura peão” faz sentido. Todavia, quando o dizemos, com certeza não afirmamos que o cavalo move a si mesmo e remove o peão do tabuleiro. Presumimos que o cavalo não possui o poder inerente de mover-se, e que o jogador causou o movimento. Contudo, enquanto falamos sobre o que ocorre no nível 2, não é preciso mencionar o jogador, ainda que ele seja necessário para compor o quadro todo. No entanto, assim que o tópico é alterado para o nível 1, a fim de debater a causa, então “cavalo captura peão” não faz nenhum sentido como descrição da causa, por não ser uma descrição da causa. Deve-se falar a respeito do jogador.
Agora para aplicar essa analogia ao nosso tópico, acresçamos umas poucas coisas ao jogo de xadrez: A) Suponha que as peças de xadrez sejam de fato sensíveis — seres inteligentes com percepção, processos reflexivos e sentimentos. B) Suponha que qualquer coisa que ocorra no tabuleiro, qualquer ação associada às peças de xadrez, deva ser causada por completo pelo jogador. Isso inclui os pensamentos e os sentimentos das peças de xadrez. C) Suponha que algumas ações realizadas pelo jogador nas peças de xadrez envolvam a percepção das peças de xadrez, e outras ações não.
Admitindo-se B, é concebível que não nos interessemos pela distinção dos dois tipos de ações em C. Supondo, porém, que nos interessemos em fazer a distinção, então poderemos chamar o primeiro tipo C1, e o segundo tipo C2.
Estamos prontos agora para aplicar a distinção ao tópico da soberania e salvação pertencentes a Deus.
Se o tópico for metafísica, ou causação, então termos como “sinergismo” e “causa secundária” não fazem sentido. São desprovidos de significado e inúteis. Quando o tópico principal é a soberania divina, fala-se de fato sobre metafísica, sobre causação. Isso significa que eu me oponho à doutrina tradicional sobre a questão. É absurdo dizer que a soberania divina não suprime “a liberdade ou contingência das causas secundárias”, ou o contrário: que a estabelece. É evidente que a liberdade e a contingência são suprimidas. Elas, e a própria ideia das causas secundárias, são completamente destruídas e perdem seu significado.
Se o tópico disser respeito às relações entre os objetos criados, então o termo “causa secundária” ainda não fará sentido, pois se a discussão estiver limitada a esse nível, a “causa” de fato não será “secundária,” e o que é “secundário” não constituirá a “causa”. Poucas vezes (ou de forma mais exata, raramente) uso o termo para acomodá-lo à tradição (para que as pessoas saibam do que estou tratando, ainda que o termo por si só seja sem sentido... Assim fico pensando se alguém sabe do que estamos falando…) — à qual não tento eliminar por completo, ainda que fosse difícil alguém me acusar se eu tentasse fazê-lo. Seja como for, normalmente estabeleço as qualificações para evitar a confusão excessiva.
Meu uso do termo “sinergismo” também serve para a acomodação à tradição. Deve existir alguma forma de distinguir C1 de C2. Todas as coisas são causadas por Deus; no entanto, a eleição e a justificação, por exemplo, não estão associadas a qualquer percepção ou sensação no homem, ao passo que a santificação — como a resistência à tentação, ou mesmo mover os lábios para orar — envolvem certo esforço consciente, alguma percepção e sensação do ser humano. (Note que também uso na Teologia sistemática a consciência do esforço como motivo para distinguir a santificação.) Em C2, até o esforço e a percepção são causados de forma direta por Deus, de tal forma que em sentido metafísico, o homem de fato não contribui nem coopera — as criaturas jamais contribuem ou cooperam em sentido metafísico, apenas em sentido relacional.
Assim se assegura alguma forma de distinção entre justificação e santificação. Não obstante, sua pergunta suscita a questão se o sinergismo é o melhor termo para descrever essa distinção, pois a ideia de “energia” está envolvida, e o homem de fato não contribui com qualquer energia inerente para cooperar com Deus. Mesmo a “energia” depositada no homem deve ser posta em movimento por Deus para exercer sua função. Na santificação, Deus faz o homem cooperar com os preceitos divinos enquanto gera a percepção do esforço nele.
Com relação à necessidade da distinção entre conversão e santificação, percebo seu ponto, mas a distinção deve ser feita. Isso acontece porque na santificação (p.ex. quando alguém resiste à tentação), a pessoa já conta com a fé, entretanto, quando a pessoa é convertida, ela recebe a fé — não há nenhum esforço espiritualmente benéfico no ato de recebê-la. Pode-se afirmar, nos termos da causação, que não há diferença — todas as coisas são causadas de forma direta e única por Deus. No entanto, existe uma diferença nos termos da relação entre os seres criados. Na santificação, Deus já instilou a disposição benevolente no homem, e lhe faz ter consciência dos próprios esforços.
O ponto de partida é a inexistência de sinergismo real em qualquer ação empreendida pelas criaturas; no entanto, caso precisemos de uma palavra para assinalar a distinção entre os dois tipos de acontecimentos causados por Deus — um sem a percepção humana, o outro com a percepção humana — então “sinergismo” é uma opção, ainda que seja indiscutivelmente imperfeita e enganosa.
Vincent Cheung
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