terça-feira, 19 de agosto de 2008

Yang e Lin

Yang e LinSendo o ser humano limitado, não parece fora de propósito admitir que haja um limite para tudo que lhe diga respeito. Entre outras, de um lado, a bondade, a retidão, a paciência, a inteligência, e de outro lado, a maldade, a falsidade, a intolerância, a burrice. Todas, todas têm limite. Existem barreiras inexcedíveis.

Pois tive a nítida impressão de que um limites foi ultrapassado quando soube que Lin Miaoke, a menina bonitinha que cantou na abertura dos Jogos Olímpicos, estava fazendo mímica, e que a verdadeira cantora, a da voz maviosa, era outra criança, Yang Peiyi, que teve seu talento roubado. A autoria do crime deve ser atribuída às autoridades chinesas responsáveis pela organização do evento. A criança que vimos cantando foi, também ela, usada para a impostura. Era tamanho o compromisso com a perfeição que não se podia admitir uma cantora com dentes desalinhados. A grande festa do talento esportivo mundial iniciou com uma mistificação.

Creio que o fato impõe ao mundo uma reflexão sobre os excessos a que nos está levando a cultura da beleza. É verdade que o totalitarismo chinês faculta tais abusos e usurpações. Aquele regime desumano, que tantos seguidores já teve, favorece o arbítrio, a brutalidade e o desrespeito à dignidade da pessoa humana (imagine, leitor, a pequena Yang, em casa, assistindo a outra cantar com sua voz!...). Mas é igualmente verdade que os chineses fizeram isso porque apresentavam o espetáculo com maior audiência na televisão mundial, cientes de que esse público esperava a perfeição, inclusive num par de pequenos dentes incisivos centrais. Esperava? Esperava. O pior é que esperava. Não duvido de que bilhões de pessoas, quando a câmera de tevê se fixasse sobre a pequena Yang, em vez de centrarem a atenção na refinada pureza de sua voz, exclamariam: "Olha os dentinhos dela!"

O que está acontecendo conosco? Qual o limite desse culto à beleza física, dessa corrida às cirurgias plásticas, dessa ridícula, inútil e frustrante busca da eterna juventude? Enquanto decai, em tudo mais o bom gosto, enquanto aumenta o desinteresse pela poesia, pela boa música, pela boa arte, buscamos a perfeição dos narizes, abdomens, seios e bundas. O que fizeram com as meninas Lin e Yang é evidência dessa insanidade geral. E tanto envolve algo realmente insano que o assunto só se tornou público em virtude da presença de jornalistas do mundo livre. Era para permanecer oculto porque até as consciências mais deformadas perceberiam que se produziu ali uma perversidade. Aliás, para 1,3 bilhões de chineses, até hoje, o fato não existiu.

Percival Puggina Percival Puggina (63) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezena de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo e de Cuba, a tragédia da utopia.
Fonte
: Mídia Sem Máscara

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