quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Hipocrisia

Acresce ainda um segundo pecado, a saber: que jamais tomam a Deus em consideração, a não ser que a isso sejam constrangidos; nem dele se aproximam até que, a despeito de sua resistência, sejam até ele arrastados. Nem ainda então se imbuem do temor espontâneo que emana da reverência à divina majestade, mas apenas de um temor servil e forçado que lhes arranca o juízo de Deus, do qual, já que dele não podem fugir, sentem alarmante pavor, e inclusive até chegam a abominá-lo.

Com efeito, o que diz Eustáquio, poeta pagão, se aplica muito bem à impiedade, ou seja, que o temor foi o primeiro a dar origem aos deuses no mundo. Quantos têm a mente alienada da justiça de Deus desejam desmesuradamente que seu tribunal seja subvertido, os quais sabem que ele subsiste para punir suas transgressões. Com disposição desse gênero pelejam acirradamente contra o Senhor, o qual não pode prescindir do juízo. Enquanto, porém, reconhecem que sobre si paira ameaçadora a potestade inevitável, já que não a conseguem rechaçar, nem dela fugir, enco- lhem-se diante dela apavorados. E assim, para que por toda parte não pareçam desprezar aquele cuja majestade os acossa, exercitam algo que tenha a aparência de religião.

Não obstante, entrementes não cessam de contaminar-se com toda sorte de vícios e de amontoar abominações sobre abominações, até que de todas as formas violem a santa lei do Senhor e dissipem toda sua justiça. Ou, ao menos, não são a tal ponto contidos por esse pretenso temor de Deus, que deixem de refestelar-se deleitosamente em seus pecados, e neles se lisonjeiam, e preferem esbaldar-se na intemperança da própria carne a deixar que o Espírito Santo a coíba com freios.

Entretanto, uma vez que esta é uma sombra vã e falaz de religião, que nem sequer merece ser chamada de sombra, outra vez daqui facilmente se infere quanto a piedade difere desse confuso conhecimento de Deus, a qual só nos peitos dos fiéis se instila e da qual exclusivamente nasce a religião. E contudo, por sinuosos rodeios, os hipócritas se propõem chegar a isto: insinuar que estão perto de Deus, de quem, no entanto, estão a fugir. Pois, quando o teor da obediência lhes deveria ser perpétuo em toda a vida, eles se rebelam acintosamente contra ele em quase todos os atos, diligenciando por aplacá-lo simplesmente por meio de uns paupérrimos sacrifícios; quando o deveriam servir, com santidade de vida e inteireza de coração, engendram ridicularias frívolas e observâncias mesquinhas de nenhum valor, mercê das quais possam conciliá-lo consigo. Pior ainda, confiam poder desincumbir-se de seus deveres meramente através de risíveis atos expiatórios.

Daí, quando nele deveria estar plantada sua confiança, relegando-o a segundo plano, escondem-se atrás de si próprios ou das criaturas. Afinal, eles se enredilham em tão avultada soma de erros, que o negror da depravação sufoca neles, e por fim extingue, aquelas centelhas que fulgiam para visualizar-se a glória de Deus.

Permanece, todavia, essa semente que de modo algum se pode erradicar totalmente, a saber, que há uma divindade; semente essa, porém, a tal ponto corrompida que de si nada produz senão os piores frutos. Ainda mais, o que estou presentemente sustentando, a saber, que o senso da divindade está inerentemente gravado nos corações humanos, com certeza maior disto se evidencia: que até a necessidade arranca confissão forçada até aos próprios réprobos. Quando as coisas lhes transcorrem tranqüilas, motejam acintosamente de Deus; são até mordazes e desabusados em minimizar-lhe o poder. Se, de qualquer forma, os aperta o desespero, os acicata a buscá-lo e lhes dita preces superficiais, do que se patenteia que não são totalmente ignorantes de Deus, porém o que deveria aflorar mais cedo lhes foi reprimido pela obstinação.

João Calvino. As Institutas, Volume 1. Capítulo 4.

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