sexta-feira, 4 de julho de 2008

Lewis e o amor divino - parte 2

"É possível que desejássemos, na verdade, que Deus se incomodasse tão pouco conosco que nos deixasse por nossa própria conta, a fim de seguirmos nossos impulsos naturais que Ele desistisse de nos transformar em algo tão diverso de nosso "eu" natural: mas, de novo, não estamos pedindo mais amor e sim menos. (...)

Um pai quase se desculpando por ter trazido seu filho ao mundo, temeroso de restringi-lo para que não cresça com inibições ou até mesmo de discipliná-lo a fim de não interferir em sua independência mental, é um símbolo bastante precário da Paternidade Divina.
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A Igreja é a noiva do Senhor a quem ele ama de tal forma que não pode suportar qualquer mancha ou ruga nela. A verdade que esta analogia serve para enfatizar é que o amor, por sua própria natureza, exige o aperfeiçoamento do ser amado; que a simples "bondade" que tudo tolera, menos o sofrimento em seu objeto, está, nesse aspecto, no pólo oposto do amor.
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O amor pode perdoar todas as enfermidades e continuar amando a despeito delas: mas o amor não pode deixar de desejar a sua remoção. O amor é mais sensível do que o próprio ódio em relação a qualquer mancha no ser amado; o seu "sentimento é mais suave e sensível do que os chifres delicados dos caracóis". De todos os poderes é ele o que mais perdoa, mas o que menos desculpa: fica satisfeito com pouco, mas exige muito.
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Quando o cristianismo diz que Deus ama o homem, isso significa que Ele o ama realmente; não se trata de um interesse indiferente, quase um "desinteresse" em nosso bem-estar, mas que, numa verdade terrível e surpreendente, somos os objetos do seu amor. Você pediu um Deus de amor, e o tem. O grande espírito que invocou tão levianamente, o "senhor de terrível aspecto", está presente: não uma benevolência senil que sonolentamente deseja que você seja feliz à sua própria moda, nem a gélida filantropia de um magistrado consciencioso, nem mesmo o cuidado de um hospedeiro que se sente responsável pelo conforto de seus hóspedes, mas o próprio fogo consumidor, o Amor que fez os mundos, persistente como o amor do artesão pela sua obra e despótico como o amor do homem por um cão, providente e venerável como o amor do pai pelo filho, ciumento, inexorável, exigente, como o amor entre os sexos.
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Não fomos feitos em princípio para amarmos a Deus (embora fôssemos também criados para isso), mas para que Deus possa amar-nos, para que nos tornemos objetos em que o amor divino possa sentir "agrado". Pedir que o amor de Deus se satisfaça conosco na condição em que nos encontramos, é pedir que Deus deixe de ser Deus: porque Ele é o que é, o Seu amor deve, na natureza das coisas, ficar impedido e sentir repulsa por certas nódoas em nosso caráter, e porque já nos ama Ele precisa esforçar-se para nos tornar dignos de amor. Não podemos sequer desejar, em nossos melhores momentos, que Ele se reconcilie com nossas impurezas presentes não mais do que a jovem mendiga poderia querer que o rei Cophetua se satisfizesse com os seus andrajos e sujeira, ou que um cão, tendo aprendido a amar o homem, pudesse desejar que este tolerasse em sua casa a criatura violenta, coberta de vermes, poluente, da alcatéia selvagem.
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O que chamaríamos aqui e agora de nossa "felicidade" não é o alvo principal que Deus tem em vista: mas, quando formos aquilo que Ele pode amar sem impedimento, seremos de fato felizes.
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A espécie de amor que atribuo a Deus, pode ser dito, é exatamente do tipo que nós seres humanos descrevemos como "egoísta" ou "possessivo", e contrasta desfavoravelmente com a outra espécie que busca primeiro a felicidade do ente amado e não a satisfação daquele que ama. Não estou certo de que seja assim que me sinto mesmo em relação ao amor humano. Não acho que devo dar muito valor à amizade de um amigo que se importe apenas com a minha felicidade e não proteste se cometo uma desonestidade. De todo modo, o protesto é aceito, e a resposta para ele colocará o assunto sob uma nova luz, e corrigirá o que tem sido unilateral em nossa discussão.
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Mas o amor de Deus, longe de ser causado pela bondade do objeto, faz surgir toda a bondade que este possui, amando-o primeiro para faze-la existir e depois tornando-a digna de amor real, embora derivado.
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Deus é Bondade, Ele pode conceder o bem, mas não pode necessitá-lo ou obtê-lo. Nesse sentido todo o Seu amor é infinitamente desprendido pela sua própria definição; ele tem tudo a dar e nada a receber. Assim sendo, se Deus fala algumas vezes como se o Impossível pudesse sofrer paixão e a plenitude eterna pudesse ter qualquer carência, e carência daqueles seres a quem concede tudo a partir da sua simples existência, isto só pode significar, caso signifique algo inteligível para nós, que o Deus do milagre tornou-se capaz de sentir tal anseio e criar em Si mesmo aquilo que nós podemos satisfazer, Se Ele nos quer, esse desejo é de sua própria escolha. Se o coração imutável pode ser entristecido pelas marionetes que ele mesmo fez, foi a Onipotência Divina, e nada mais, que assim o sujeitou, voluntariamente, e com uma humildade que excede todo entendimento".

1 Comentário:

Roberto Vargas Jr. disse...

Caríssimos,

Bela postagem. C.S. Lewis é mesmo fantástico. Sempre me impressiono como ele coloca coisas tão profundas de forma tão simples e agradáveis de ler!
Sobre este tema, o amor de Deus, também fiz uma postagem com base em O problema do sofrimento. O post é Sobre o amor de Deus: citando C.S. Lewis, caso queiram conferir!
Em Cristo,
Roberto

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